Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infãncia
que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz?Não sei;
Fui-o outrora agora.1
Os primeiros contatos com a Arte
TV preto e branco, teto alto, madeira corrida no chão da sala. No fim do corredor da casa antiga, com poucos móveis, havia um rádio muito velho. Para alcançá-lo precisava de uma cadeira. Meu violão era um pedaço de pau já gasto pelo tempo.
Nos intervalos entre as brincadeiras de rua e o “Capitão Asa”, ouvia minha mãe cantar os hinos da igreja; meu pai, sempre metalúrgico, quando chegava logo se denunciava pelo som do saco de bala que trazia para mim e meu irmão. Em casa não havia livros. Eu me alimentava de sons. Vez ou outra passava, lá na rua, o moço que trocava garrafa por pintinho e era um estardalhaço quase distorcido no auto falante. O mundo deixou de ser preto e branco quando passei a ver o Juarez Machado, no “Show da Vida”, todo o domingo. Seu não-som me dizia muito mais, acompanhado de sua telas que pareciam sonhos. Na verdade, seus quadros eram a extensão das brincadeiras que eu inventava quando olhava da janela e imaginava um mundo nas nuvens. Junto com as imagens de sonhos vieram as letras e elas me tomaram de tal jeito que virava noites a fazer cópias e mais cópias das lições que trazia para casa.
Meu radinho velho, a negra bicicleta do quintal e o som do saco de balas foram embora junto com meu pai. A trilha sonora que se ouvia, ao fundo, era a mistura dos hinos divinos, cantados por minha mãe, e das melodias dos chorinhos, das orquestras de auditório e da atonalidade que morava na casa de meu tio. A dor de dente cuidava-se com “Jimi Hendrix”; a garganta inflamada com “A Barca do Sol”. Na escola, tudo era muito normal. Eu ficava depois da hora, porque tinha feito arruaça. Mas, para a casa do meu tio eu voltava todo final de semana. Já na entrada, pois a casa ficava ao fundo de um longo corredor, ouvia-se o clamor de “Robert Plant” dizendo que o “som continuava o mesmo” ou que “as escadas levavam para o céu”; não havia certo ou errado, feio ou bonito. O que havia era som. Blues, Rock progressivo, Chorinho... Ah! Durante algum tempo, ainda, pude aprender a ouvir o samba da melhor qualidade introduzido pelo meu padrasto. Os gêneros se entrelaçavam formando a minha alma. Meu tio não falava, ele apenas fechava o olhar diante da vitrola Phillips. A música era o texto sobre o qual eu pautava meu dia-a-dia. O que mais me chamava a atenção na hora do recreio era aquele som de milhares de vozes cruzadas, no pátio da escola, que contrastava com o conhecido “cobrir/sentido” que éramos obrigados a fazer, afinal... eram os anos 70.
Formação escolar
Como a experiência sonora sempre fez parte importante da minha vida, ao mudarmos de cidade, a paisagem também se transformou. De latidos de cachorros e poucos carros que passavam na rua onde morávamos, fui parar no meio do Centro do Rio. Sim! E a Presidente Vargas foi palco de alguns acontecimentos importantes. A paisagem sonora que ali se mostrava era absurdamente agressiva, fora o sino da Igreja de S'Antana. Tinha os aviões e helicópteros! Os da Marinha faziam um som ensurdecedor quando pousavam atrás do Souza Aguiar. Uma coisa compensou: o centro cultural que abrigava a escola municipal onde estudei. Era uma maravilha e foi lá que travei os primeiros contatos com as artes plásticas e com a música.
Toda aquela experiência de criança encontrava campo fértil no “Calouste Gulbenkian”. Foi no palco do Teatro Gonzaguinha, aos 10 anos, que fiz minha primeira apresentação. Incentivados pela professora, eu e alguns colegas do curso de flauta doce acompanhamos, na percussão, um músico que ali se apresentou. Ali, também, foi onde me alfabetizei musicalmente. Fiquei, naquele espaço mágico, o tempo necessário para a semente da música crescer em mim.
Profissionalização e cursos realizados:
Ao mudarmos para Niterói, as coisas ficaram mais difíceis. Minha mãe e minha tia para cuidarem de três moleques! Caí na vida e acabei em uma agência bancária. Como havia determinado que tocaria um instrumento, guardei toda grana que podia e adquiri minha primeira flauta transversa depois de muitos encontros e desencontros. Já matriculado no curso livre da Escola de Música Villa-lobos consegui encontrar um instrumento novo, Yamaha. Depois disso meus dias como bancário estavam contados pois eu já não demonstrava talento nem para acumular capital e nem para me dedicar à tarefas repetitivas. O que culminou com minha saída. Nesta época, lembro-me de visitar o circo voador todas as sextas feiras. Ouvi muito Punk Rock e Bossa Nova.
O curso profissionalizante da Escola de Música Villa-lobos, em pouco tempo, me proporcionou a possibilidade de participar de cursos de férias em Campos dos Goitacazes e em Juiz de Fora, onde conheci a Profª Odette Ernest Dias com quem aprendi quase tudo sobre flauta e fotografia. Pude vivenciar e tocar em orquestra, ouvir e tocar músicas coloniais barrocas, jazz e clássicos. No último curso do qual participei, fui convidado a integrar a Orquestra David Machado (1999). No entanto, algo estava faltando e essa falta começou a ser preenchida pelas aulas que versavam sobre Estética com o Profº José Maurício e o ProfºTatoo Taborda. A partir do momento em que tomei contato com um outro modo de fazer música, aquelas lembranças de criança imediatamente voltaram e as aulas de “piano preparado”, ministradas pelo Profº Tatoo Taborda, eram o retorno a um mundo interior.
Ao mesmo tempo em que largava o banco e entrava no curso profissionalizante da Escola de Música Villa-lobos, comecei a frequentar o atelier de Aldo de Paula Fonseca, artísta plástico que nos anos 70 fez produção gráfica para inúmeros artistas da Polygram. Durante dois anos experimentei o carvão, o pastel seco, o grafite, o acrílico e o óleo, além da escultura. Neste periodo também frequentei o curso de fotografia no Senac como bolsista.
Nesta altura já me apresentava em bares, na noite do Rio. Eu curtia o que era possível, mas, como ninguém é de ferro, um dia a depressão me abateu. A cobrança de todos, ao meu redor, era grande!
Como eu iria levar a vida? Desenhando? Tocando flauta? Fotografando? Perguntavam-me. Nesse período experimentei outros ofícios: tirei xerox em papelaria, concertei bicicleta e trabalhei como ajudante de um amigo que trocava tampas de freezer. Andavamos o dia inteiro, em praias e bares, recolhendo pedidos e voltavamos no dia seguinte, com o peso nas costas, para fazer o serviço.
Atuação profissional: professor e músico
Em 1996, mesmo sem Graduação, comecei a lecionar música no Colégio Itapuca de Niterói, onde permaneci por 10 anos. Este elo me mantinha ligado à realidade, pois em função da depressão, eu dormia de dia e ficava acordado durante a noite, desenhando, ouvindo música e sempre interessado em filosofia. Li tudo que caiu na minha mão. “A República “, Adous Huxley, Castanheda, Kafka e outros.
A partir daí fui reestruturando meu ser-no-mundo e fui encontrando sentido para aqueles saberes que havia em mim. Em 2002, comecei a lecionar flauta transversa no curso livre do Conservatório de Música de Niterói e, em 2006, conclui minha graduação em Educação Artística, na mesma instituição, graças a Deus. Com a vivência que me permiti experimentar e outras leituras, fui aprovado em 3º lugar no Mestrado em Ciência da Arte-UFF(2007). No mesmo ano, além de ministrar aulas nas disciplinas de Comunicação e Expressões Artísticas e Filosofia da Educação, fundei o grupo de música antiga “Scriptoria Antiqua”. Desde de 2002, na verdade, desenvolvo um trabalho de valorização da música brasileira no ensino médio e fundamental como Professor de Música do Colégio Pluz e Professor de Artes do Colégio Saviani.
Mestrado : O músico pesquisador.
No processo de construção da dissertação do Mestrado mais uma vez retornei às experiências vivídas. Por isso me identifiquei com a fenomenologia. Entre exposições, apresentações e cursos, formou-se em mim a idéia de que a Arte era muito mais que classificações em estílos musicais, literários ou estéticos. A Arte configura-se como uma possibilidade de conhecer o mundo.
A dissertação foi um reencontro com meu próprio fazer musical quando escolhi trabalhar partindo de uma experiência minha com o mundo, o que resultou na criação de alguns neologismos na falta de palavras que expressasem melhor aquilo que eu entendia ser o meu pensamento a respeito da expressão sonora. Como uma criança que passou pela experiência sonora, pela qual passei, poderia ver-ouvir um mundo se não fosse de uma forma incomum? Minha relação passou a se dar muito mais com o “som” do que, propriamente, com a música. Passei a entender, então, a poesia, pois ela quer subverter a palavra, encontrar outros usos, deslizar o sentido, criar novos sons.
Me senti realizado ao construir, ler, tocar e compor minha dissertação. Ela não está desvinculada da vida, muito pelo contrário, ela está entranhada de vida. Terminada mais esta etapa acadêmica, dei início a uma nova jornada, sendo aprovado no vestibular, na forma de reingresso, da Universidade Federal Fluminense para o curso de bacharelado em Filosofia.
Doutorado: uma proposta
Ao mesmo tempo em que o passado se apresenta tão bem conectado com meu presente, reafirmando minhas vivências, o que me norteia é a dúvida. Pareço me encaminhar para o essencial e vou deixando, pelo caminho, o que parece pesar o pensamento. Ainda que seja mais difícil, prefiro pensar a música do que simplesmente assimilá-la encontrando, desta forma, uma nova possibilidade, inclusive, de construir um real.
Na verdade, nunca me imaginei trilhando um caminho acadêmico, mas percorro esse caminho com o cuidado de não me entregar às facilidades formalistas e à pobreza das classificações. Acredito ser o curso Ciência da Literatura: Poética o melhor lugar para desenvolver as reflexões que se iniciaram no Mestrado. Buscarei aprofundar o que foi investigado no Mestrado, a partir da construção do neologismo, a saber, “audisservação” e da observação sonora, como uma poiésis, do lugar das plurisignificações. Vejo, claramente, em minhas atividades profissionais e acadêmicas, os reflexos das experiências pelas quais passei na infância.
Não posso deixar de mencionar a importância de minha esposa nesse processo de reestruturação. Foi ela , em determinado momento quem disse: “Você já leu tanto! Está na hora de você aproveitar a sua vivência”. Voltei a tocar flauta quando conheci Jacqueline. Hoje, nosso filho, Pedro, adora inventar palavras, tocar bateria e sonhar... antes de ouvir histórias.
1Cancioneiro: in: Obra poética. São Paulo: Cia José Aguiar Editora,1972 (140-141). PESSOA, Fernando.